O mundo quase não cabia em seu kichute. Quando pequeno, achava que Deus era o tio de barba que ajudava a fazer o gol. Fingia o sono até a mãe silenciar o apartamento. Descalço, sumia com cautela de si, mas deixava os dentes rangendo e uma voz, a mãe cresceu achando que ele falava dormindo. A epóca era fértil, cada passo uma semente, mesmo sem a paciência de esperar germinar: às vezes inundava o quarto de lágrimas tentando regar. Sua paixão era o céu negro, a noite, o futebol dos mais velhos que só acontecia nessa hora milagrada pelas estrelas. Durante muito tempo até ele mesmo acreditou no futebol como motivação. Acreditou no céu, nas estrelas, na lua. Quando finalmente descobriu a filha do goleiro, não teve dúvidas. Os dentes ainda desgastavam o sono da mãe, quando o beijo pintou o rosto dela: no mesmo momento o goleiro sucumbia ao gol, como se intuitivamente soubesse que sua filha acabara de ser menos sua filha e mais namorada de outro. O segredo, o mapa dos pontos escuros do condomínio, e os vestígios sendo apagados, menos os rostos sorridentes, e desculpas cretinas para a felicidade. É a escola pai, está tão bom lá. O cavanhaque diabólico do goleiro-delegado proibia qualquer insinuação. Construiram um barquinho e navegavam as noites, às vezes pescavam estrelas. E o amor em versinhos escorrendo no ouvido dela. Quando as palavras lhe ultrapassavam, jamais perdia o fôlego, sempre pedia carona.
Vitor Freire